17/02/2020 07h05 - Atualizado em 17/02/2020 07h05

MPF requer disponibilização de tecnologias de acessibilidade nas salas de cinema de todo o país

Quadro de inconstitucionalidade é agravado por medida provisória que adiou por um ano a concretização de direitos das pessoas com deficiência

O Ministério Público Federal (MPF) acionou a Justiça para que as salas de cinema em todo o país ofereçam, imediatamente, recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência. Tais providências, previstas no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), deveriam ter sido implementadas em janeiro de 2020. Porém, a medida provisória 917, editada pelo presidente da República em 31 de dezembro de 2019, prorrogou por mais um ano o tempo limite para que as exibidoras de filmes adotem as tecnologias assistivas, tais quais audiodescrição, janela com intérprete de Libras e legendas descritivas na forma de “closed caption”. O MPF reiterou requerimento para que a Justiça reconheça a inconstitucionalidade desse novo prazo e determine a implementação imediata dos recursos de acessibilidade nos cinemas brasileiros.

Exclusão prolongada - Tal demanda é objeto de duas ações civis públicas ajuizadas em 2016 pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), órgão do Ministério Público Federal, em São Paulo. Nesses processos, o MPF já havia solicitado o reconhecimento da inconstitucionalidade do prazo original previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência: a lei concedia quatro anos e seis meses para que as adaptações das salas de cinema fossem concretizadas, intervalo considerado demasiadamente longo pelo MPF. Os pedidos da procuradoria chegaram a ser acolhidos pela Justiça em 2018, quando decisões liminares nas duas ações determinaram a adoção das tecnologias assistivas nos cinemas, a partir de março de 2019. A medida, porém, foi suspensa em sede de agravo pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), e, com isso, o prazo originalmente previsto pelo estatuto foi restabelecido, devendo as salas de cinema serem adaptadas até janeiro deste ano.

A edição da medida provisória 917, no entanto, tornou mais grave o quadro de desrespeito aos direitos das pessoas com deficiência, combatido pelo MPF, pois prorrogou por mais um ano o tempo limite para que as exibidoras de filmes implementem os recursos de acessibilidade. A justificativa: o governo federal entendeu (mesmo após quatro anos e seis meses) que não houve tempo hábil para que o mercado se organizasse.

Os registros de reuniões realizadas pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) ao longo de 2018, porém, demonstram que já existem recursos tecnológicos disponíveis para que pessoas com deficiência visual ou auditiva compreendam o conteúdo dos filmes em cartaz. Os exibidores reunidos com a agência reguladora fixaram, inclusive, um cronograma para adaptação de 100% das salas até janeiro de 2020, com a produção em escala comercial dos mecanismos de acessibilidade.

Estimativa da Ancine indica que, para um conjunto de três mil salas de cinema (80% do total nacional), serão necessários aproximadamente R$ 126 milhões em obras de adaptação e aquisição de equipamentos. Ainda segundo dados levantados pela agência, a renda bruta obtida pelas salas de cinema brasileiras em 2019 foi de R$ 2,7 bilhões – quase o triplo do faturamento do setor há três anos. As empresas exibidoras de filmes, no entanto, argumentam que o adiamento das medidas de acessibilidade até 2021 era necessário pois o Poder Público não viabilizou o financiamento para a implementação das tecnologias assistivas dentro do prazo original.

Vale lembrar, porém, que a tarefa de garantir o acesso das pessoas com deficiência a seus direitos não cabe apenas ao Estado, mas também aos agentes econômicos. “As atividades empresariais, paralelamente à busca do lucro – indiscutível e legítimo numa democracia capitalista –, têm ainda uma função social. Numa sociedade democrática, as instituições privadas também têm o dever de proteger as pessoas com deficiência”, advertem os procuradores da República Lisiane Braecher e Pedro Antonio de Oliveira Machado, responsáveis pelas ações. “É de se perguntar inclusive se um mercado bilionário realmente necessita de financiamento estatal para cumprir o que determina o marco legal e regulatório sobre o tema”, questionam.

Legislação – Os procuradores ressaltam que nenhum dos direitos estabelecidos pela Lei 13.146/2015 é inédito. Os deveres de inclusão já existiam na Constituição de 1988 e foram reafirmados pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizada em Nova York, e incorporada ao ordenamento pátrio em 2009. “Trata-se de marco regulatório claro e expresso que já existe há vários anos, não podendo ser considerado como elemento surpresa ou fator de insegurança jurídica”, avaliam. “Agride a inteligência, não encontrando respaldo qualquer na razoabilidade e proporcionalidade, a alegação da falta de tempo para adoção das medidas necessárias para que as pessoas com deficiência parem de ser tratadas como cidadãos de segunda categoria, circunstância que demonstra, por parte do Estado e dos agentes econômicos envolvidos, um afastamento indisfarçável e perigoso dos princípios republicano e democrático”, concluem.

Para o MPF, a edição da medida provisória, no apagar das luzes de 2019, demonstra que o Estado brasileiro, no tema da acessibilidade, está capturado por interesses privados. “O Poder Executivo, sem nenhuma cerimônia e constrangimento, acolhe demandas mercadológicas e faz tábula rasa dos direitos constitucionais das pessoas com deficiência, descumprindo solenemente compromissos internacionais assumidos pelo país”, destacam os procuradores.

Ações civis públicas – O MPF, identificando a dificuldade de pessoas com deficiência em acessar o conteúdo de obras cinematográficas por falta de tecnologias de acessibilidade em salas de cinemas, ajuizou, em 2016, duas ações civil públicas: uma em face das principais distribuidoras de filmes atuantes no Brasil (autos 0000534-93.2016.4.03.6100) e outra direcionada às exibidoras de filmes que concentram quase 80% das salas de cinema espalhadas no país (autos 0009601-82.2016.4.03.6100). Nesses processos, a PRDC requer ao Poder Judiciário que as empresas rés sejam compelidas a cumprir os dispositivos legais e constitucionais que determinam a inserção de tecnologias assistivas (legendas, janela com intérprete de Libras e audiodescrição) em todas as cópias de produções audiovisuais destinadas ao mercado nacional e a disponibilização em todas as salas de cinema, em todas as sessões, de recursos de acessibilidade para a pessoa com deficiência. Também foram incluídos no polo passivo das demandas ministeriais a União e a Ancine, tendo em vista o dever de fiscalizar a

efetivação desses direitos.

Os pedidos feitos pelo MPF em 2016 foram acolhidos pela 14ª Vara Federal de São Paulo em 19 de novembro de 2018. Porém, as decisões liminares, que reconheceram a exclusão prolongada das pessoas com deficiência às obras audiovisuais e determinaram a adoção das tecnologias assistivas nos cinemas, foram suspensas pela desembargadora Federal Diva Prestes Marcondes Malerbi, do TRF3, em 19 de dezembro de 2018. Com a edição da medida provisória 917, as exibidoras requereram à Justiça que a prorrogação do prazo seja levada em consideração e requisitaram a produção de novas provas documentais e testemunhais, o que poderá retardar o proferimento da sentença.

Assim, o MPF solicita o indeferimento do pedido de produção de provas pretendido pelas empresas rés e o julgamento antecipado da ação. Os procuradores reiteram ainda o pleito para que seja reconhecida a inconstitucionalidade do inciso II do artigo 125 do Estatuto da Pessoa com Deficiência – que estabelece o prazo para implementação dos recursos de acessibilidade nas salas de cinema –, sob a perspectiva de controle incidental e difuso de constitucionalidade. “É preciso não perder de vista os dispositivos constitucionais que dizem respeito à acessibilidade e o dever do Poder Público em propiciar, de há muito, o acesso de todos às obras cinematográficas não só como mercadorias oferecidas ao consumo, mas, muito mais que isso, como produto da liberdade de expressão, de transmissão de conhecimento e de cultura”, concluem os procuradores.

Assessoria de Comunicação
Procuradoria da República no Estado de São Paulo