29/06/2022 18h27 - Atualizado em 29/06/2022 18h28

Minha viagem à Amazônia - o que vi em Maués/AM

Pe. Eduardo Lima

Fui para o Amazonas num tempo em que a floresta estava em grande evidência e de luto. Quando o mundo sentia o acontecido com o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips. O impacto dessas perdas reverberou em todos e, com certeza, ainda ecoa pela mata, rios e igapós, atingindo os povos e animais que nela habitam. Tomo a liberdade de citar a última frase que Dom Philips postou em suas redes sociais – "Amazônia, sua linda" — que, em sua simplicidade, traduz também o meu sentimento por esta região, que me abraça de maneiras diferentes, todas as vezes em que lá estou.

Para organizar as muitas atividades de uma Missão UNIVIDA na Amazônia, me desloquei mais de dois mil quilômetros, cortando o Brasil, encurtando o tempo de viagem, usando aviões. O deslumbramento iniciou-se quando, próximo a Manaus, observei o serpentear do Rio Amazonas. E só aumentou quando, em voo de Manaus até Maués, em aeronave pequena, sobrevoei a floresta. Avião pequeno e a sensação de estar muito próximo de tanta mata e água, causou-me uma estranheza, misto de arrebatamento pela beleza e pelo mistério daquele lugar. Ainda não se conhece tudo que a Amazônia guarda em suas cores densas e profundas como nos quadros de Giovanni Battista Piazetta, naquele céu crepuscular espelhado na água, onde algo de negro e ocre se misturava na chegada a Maués.

Lembro-me de, em criança, assistir pela TV a reportagens, documentários sobre a Amazônia e ficava imaginado como seria estar naquele lugar de tamanha floresta, rios que mais parecem mares, de tantos animais de diferentes espécies, de imensa riqueza e dos povos da floresta, – os que eu mais conhecia eram os indígenas, mas sabia também dos ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, caboclos, quilombolas que precisam da mata e dos rios para sobreviver. Meu olhar infantil agigantava ainda mais a imensidão amazônica e fomentava a vontade de visitá-la e conhecê-la.

E tive o privilégio de lá estar, pela quinta vez. E, a cada nova viagem, descubro que aquele fascínio pela floresta que possuía continua em mim e parece que nunca se esgotará. A impressão que tenho é a de que as descobertas são infindáveis nessa vastidão verde e líquida.

Navegar pelas águas de alguns dos rios da Amazônia me faz ter a sensação de que aqui é meu lugar, me sinto apaziguado deslizando por suas superfícies, que refletem céu e mata a ponto de se confundirem. Na segunda-feira, quando descíamos o Rio Maués-Açu em direção às comunidades ribeirinhas, suas águas estavam calmas e a vegetação das margens, muito verdes, projetando o contraste adequado. O rio espelhando o céu. Coloquei-me a filmar, fotografar a paisagem, tomando cuidado com o enquadramento, posição da câmera, para que a fotografia fosse a melhor possível.  Tentei registar toda a beleza. E, de repente, percebi que muito mais valia apreciar aquilo tudo que se descortinava à minha frente, com meus olhos, sem a necessidade de imagem congelada, que, por melhor que fosse, nunca seria suficiente para a realidade. Não teria o frescor da água, nem o vento, nem o calor do sol, nem a qualidade daquele reverberar. E aquietei-me. Passei a sentir e refletir. Nisso, pensei: se o Céu for assim, como esse lugar, então é perfeito. Deus nos preparou uma riqueza imensa.

Após navegar horas pelo Rio Maués-Açu, avistamos a comunidade que nos aguardava. Fiquei encantado com tudo o que via, pelas margens do rio e nos barrancos, havia uma alegre comitiva de boas-vindas, muitas pessoas aguardando pelo padre que veio de São Paulo. Ali, antes mesmo de desembarcar, já me senti abraçado por aquela gente e pensei que este momento me trouxe o prazer maior que pude encontrar na Amazônia. Aquelas crianças, homens e mulheres que estavam ali me recepcionando revelavam a mim a humanidade que possuíam, na simplicidade do receber, no contentamento em suas expressões, no colorido de suas roupas e no alarido de suas vozes. O Humano mais bonito, mais profundo e mais sincero que alguém poderia encontrar. Estavam ali, em sua essência e em entrega, consentindo minha presença entre eles, aguardando pelas novidades que a Missão UNIVIDA lhes trará. E, em comitiva, me acompanharam nas visitas, primeiro até uma pequena igreja, dedicada a Santo Antônio e São Sebastião, depois fomos ao Posto de Saúde e à escola. Tudo muito isolado do mundo que conhecemos, sem sinal para celular e sem internet, prevalecendo a essência da comunicação verbal, palavras ditas e ouvidas, face a face. Toda essa proximidade me fazia experimentar o mistério que ali se mostrava, a essência da simplicidade da vida, o quanto vale estar perto do outro, sem barreiras, sendo o que cada um de nós é de verdadeiro, os laços estabelecidos e a fraternidade espontânea.

Depois de uma bonita reunião com a comunidade, quando expus as pretensões da Missão UNIVIDA entre eles, para janeiro de 2023, me levaram até uma pequena casa de madeira.  Logo à chegada, me chamaram a atenção as cortinas nas janelas, flores plantadas ao redor da habitação, muitas cores e detalhes, o asseio - o alumínio das panelas brilhava - onde, por todos os lados, o capricho se manifestava. E mais uma vez, me coloquei a pensar: nós todos poderíamos ser assim, ter capricho na vida e pela vida, em tudo o que fizermos, tudo com detalhes, com cuidados, com prazer. E, naquele lar, fui convidado para partilhar do alimento, o momento da comensalidade. Prepararam-me um almoço especial, com as melhores iguarias que poderiam oferecer a um hóspede. E então, me ofereceram os pratos especiais – tatu e anta. Carnes de caça, as quais não estou habituado, veio o impacto cultural, não vou negar. Apesar da estranheza inicial, naquele ambiente tão agradável, o comer entre amigos, experimentei daquela refeição.  O preparo estava perfeito, o tempero amazônico prevalecia e, assim, mais uma experiência adquirida na Amazônia – a do paladar. Naquela mesa, naquele instante, passei a ser um deles. Precisamos nos aproximar das pessoas, nos igualar, quando nos mantemos de longe, corremos o risco de ser expectadores da vida e não integrantes dela. Mas quando nos sentamos à mesa, a mesa nos iguala, somos todos comensais, ali, naquela pequena casa, em volta daquela mesa, à margem do rio Maués-Açu. E ali, no momento em que comíamos, fui entendendo que ser comensal é viver tudo o que a vida nos proporciona. Ver tudo o que o outro nos proporciona, na sua beleza e simplicidade. E fui capaz de querer experimentar o que o outro me ofertava e quis ser o outro. E isto já bastava. Deus me permitiu conhecer ainda mais minha humanidade a partir da humanidade do outro, neste caso, a partir da realidade dos ribeirinhos.

Quanta vida nesses rios e igarapés? E a excepcional vegetação? A megadiversidade da Amazônia é também nossa responsabilidade. Estar na Amazônia me traz a consciência e provoca uma reação amorosa por esse bioma. E, novamente, o paralelo entre a grandiosidade local e a vida, me perpassa. A vida, quando tentamos entendê-la, nos foge a questão ambiental. Não a computamos em nossas divagações filosóficas. Para explicar essa questão, gosto de citar Ailton Krenak: "Nós somos terra, nós somos água". É preciso considerar os ciclos da natureza e nós como parte dela. Para o líder indígena e ambientalista, chamar a água ou qualquer elemento natural de recurso, é limitar sua grandeza e verdade, pois a coloca como sendo algo consumido pelo ser humano, enquanto que o elemento natural é vida por si, pela própria constituição. Água é um ser vivo, capaz de alimentar-nos e dar-nos vida.

Sensações, sentimentos e emoções são palavras bem conhecidas e utilizadas no cotidiano, mas a Amazônia as provoca, porque a Amazônia é sensorial. Além das impressões que a natureza desperta, há o acolhimento com que fui recebido. Aquele povo, especialmente o da região de Maués, me recebeu com sinceridade, me abraçou física e simbolicamente em cada visita que fiz, me abrigou em seu meio e me considerou um deles. Dividiram suas mesas, ofertaram-me suas iguarias culinárias, a riqueza de seu guaraná, a hospitalidade de suas almas generosas. E foi assim, entre meus irmãos padres, com a comunidade ribeirinha, com as autoridades locais e entre as crianças. Essas então, quanto carinho, espontaneidade e alegria me ofereceram, gratuitamente, sem pretensão de troca, sem validação no fazer.

Após dias intensos de trabalho e enlevo, cansado, mas satisfeito por tudo o que vivenciei, retornei à minha casa, com toda a estrutura organizacional da 3ª Missão UNIVIDA Amazônia pronta. E com a certeza de que, seja navegando ou voando pela Amazônia, abrigado entre seu povo, estou no caminho certo, o que escolhi, o que me define: ser missionário. Quando lá estou, sinto-me mais perto da paz, de Deus.